sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

LEILA E CARLOTA



            Era uma velha cansada e generosa. Cansou. Já não saia de casa e quase não escutava e pouco comia. Diminuíra, encurvara e emagrecera era um pedaço de coisa velha e branca. Os filhos contrataram um enfermeira que cozinhava e limpava a pouca sujeira que fazia.



            A enfermeira tinha quarenta anos, era calma e boa. Não posso dizer que se davam bem, porque a velha já não notava o mundo ao seu redor, fosse uns anos atrás ela não suportaria o matraquear da máquina de costura da enfermeira, agora gostava, sentia o vibrar do som e isso lhe trazia lembranças. Viagens de trens antigas, sem histórias, mas com a sensação de está no banco estofado percebendo a claridade e o mundo ao seu redor. Carlota, velha professora de piano por mais de cinquenta anos, os sons sempre foram carregados de significados e sentimentos. Por mais que se esforçara numa tinha conseguido ser amiga de pessoas com a voz muito aguda ou arrastada. Ao ouvir os sons da rua sabia com precisão a temperatura e a humidade do dia. Modulação, timbre, altura e ritmo foram os seus instrumentos para entender o mundo.



            Leila era forte e negra, todos paravam espantados com o par que passeava nas ruas nas manhãs sem chuva. Para Leila esse contraste nada significava, Carlota no braço sólido e macio de quem se apoiava sabia ser lenta e silenciosa. No quarteirão pequeno sempre as mesmas árvores floridas eram notadas e nomeadas por Carlota. Com tempo ela cansou de falar e apenas parava e olhava demoradamente para cada uma das árvores com o mesmo espanto original e nostálgico.



            Os sonos ficaram compridos e a comida cada dia mais rala. No apartamento quando não estava dormindo, Carlota sentava-se em sua poltrona em frente a janela e ficava horas vendo o vento balançar a cortina de crepe branca. Leila não sabia mas aquele crepe acompanhava Carlota a muitos anos, na casa grande, na pequena e agora no apartamento. Carlota não prestara maior atenção, não era dada a afetos, o crepe veio junto porque veio, podia servir e acabou servindo em uma janela ou outra. Agora estava meio manchado e a luz do sol passava de maneiras diferentes em cada centímetro do pano.



            Carlota imaginava o som do vento do crepe. Pensava na associação feliz entre peso e maleabilidade que o crepe possui, deixando-se estofar para depois voar arrebitado. Refletia também sobre a estrutura atual do tecido, afinal, o pano tem uma história que fazia soar de um modo pessoal e único. Encontro com o sol, o vento e a água, de quantas lavagens já sofrera para começar tudo de novo de forma bem diferente.



            Leila sabia que a velhinha estava perto do fim, aceitava mais não conseguia imaginar que ela sofria. Não havia muito o que fazer mas esse pouco ela faria. Se a audição da velha não mais existia, Leila sabia que sua visão continuava boa ao se encantar com cada nova florada e ficava imaginando como ela poderia sofrer vendo aquela cortina velha. No dia seguinte comprou com seu próprio dinheiro uma nova e levou Carlota para ver, quando foi para cozinha pegar uma bandeja com um copo de  água para os remédios da tarde, ao voltar Carlota já não mais respirava. 

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